De modo a mantermos activo este segundo blogue, iniciamos a partir de hoje uma rubrica mensal que visa transcrever os artigos mais pertinentes que saem na imprensa (um por cada mês). Tentaremos trazer textos com conteúdos diferenciados, sejam eles da esfera nacional ou internacional.
Passaremos a citar aquele que seleccionamos para o mês de Março:
Título do Artigo - A Turquia exige, a UE paga e os refugiados sofrem
Autor - José Pedro Teixeira Fernandes
Data - 12/03/1988
Fonte - Jornal "Público"
1. Nada exemplifica melhor a actual Turquia que o estado lastimável
da liberdade de expressão e a pressão sobre os opositores ao poder
instituído. Ao mesmo tempo que o ambiente de intimidação se torna o novo
normal da vida política do país — com sucessivos ataques à liberdade de
imprensa —, ideologias radicalmente anti-democráticas têm o seu terreno
livre. O contraste não podia ser mais flagrante. Enquanto o jornal
Zaman, crítico do governo do AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento)
de Davutoglu e do Presidente Erdogan, era encerrado, o grupo islamista
radical Hizb ut-Tahrir reunia-se em Ancara para discutir o
restabelecimento do califado. A conferência para o restabelecimento do
califado decorreu num pavilhão desportivo da capital com o nome de
Atatürk — ironicamente, o fundador da Turquia moderna, a quem se deve a
abolição do califado em 1924. Anteriormente, o Hizb ut-Tahrir tinha
feito uma conferência internacional, em Istambul, na altura que se
cumprem noventa e dois anos da supressão dessa instituição
político-religiosa islâmica. (Ver
"Radical Islamist Hizb ut-Tahrir calls for caliphate in grand meeting in Ankara” in Hürriyet Daily News, 9/03/2016).
2.
É um equívoco pensar que a actual deriva autoritária da Turquia se deve
fundamentalmente às dificuldades criadas pela União Europeia nas
negociações de adesão. Há uma parte de verdade nisso, mas é uma leitura
que subestima, ou não compreende, a sociologia e política interna do
país. É injusta para os partidos mais genuinamente pró-europeus e
seculares – o CHP (Partido Republicano do Povo) e os curdos do HDP
(Partido Democrático do Povo) – que enfrentam, há muito tempo, uma
situação interna difícil. Idealiza um AKP e um Erdogan pró-europeísta,
nos primórdios da chegada ao poder, que nunca existiu. Nem hoje, nem no
passado, a maioria dos seus eleitores, imbuída de valores muçulmanos
profundamente conservadores, se identificou com os valores democráticos,
seculares e pós-modernos europeus. Esse europeísmo de conveniência foi
útil para enfraquecer os alicerces do Estado secular, garantido pelos
militares e outras instituições públicas herdadas de Atatürk. Resultava
de uma compreensível ambição de aceder ao bem-estar material dos
europeus. Mas não mais do que isso. O problema é que a União Europeia é
uma organização de natureza quase-constitucional, com tudo aquilo que
implica ao nível dos Estados.
3. Para os que apoiam a adesão da
Turquia, imaginado vantagens estratégicas, convém pensarem de forma
abrangente em todas as implicações. Se esta se tivesse concretizado
assistiríamos hoje à internalização do problema dos refugiados da guerra
da Síria numa dimensão muito superior à actual. Em território da
Turquia estarão já mais de 2,7 milhões. Passavam, automaticamente, a
estar num território da União Europeia. Podemos imaginar o que ocorreria
numa situação de exposição directa das fronteiras europeias a esse
conflito devastador. A Turquia poderia exigir a sua redistribuição. A
tentação de outros Estados-Membros, sob pressão de movimentos populistas
e de uma opinião pública alarmada, em repor o controlo permanente das
fronteiras nacionais, seria grande. As pressões sobre o espaço Schengen
levariam, provavelmente, ao seu abandono. Um conflito político grave
entre os Estados-Membros seria previsível de ocorrer. (Ver
“E se a Turquia fosse membro da União Europeia?”
in Público 19/10/2015). O dramatismo que vimos na crise da Grécia e da
Zona Euro — e na actual crise dos refugiados sem esses contornos —, pode
dar-nos uma pálida ideia do que seria uma crise política dessa
envergadura. Talvez um golpe fatal para a própria União.
4. A
Turquia de inclinação autoritária, cada vez mais relegando a democracia a
um mero jogo eleitoral, é a aposta desesperada dos líderes europeus
para resolver a crise dos refugiados, especialmente de Angela Merkel.
Estamos perante um choque frontal com os valores em torno dos quais se
constituiu a União. O artigo 2.° do Tratado da União Europeia estabelece
os seus alicerces “nos valores do respeito pela dignidade humana, da
liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de Direito e do
respeito pelos Direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas
pertencentes a minorias.” Acrescenta, ainda, o artigo 49.º, sobre os
candidatos à adesão, que estes deverão respeitar os valores referidos no
artigo 2.º e estar empenhados em promovê-los. O que faz a Turquia,
enquanto país candidato? Para além das condicionantes à liberdade de
opinião e de imprensa, intensifica as restrições às minorias,
especialmente aos curdos. Se há altura em que as negociações de adesão
deviam servir para pressionar o respeito de valores democráticos e
pluralistas, seria esta. O que faz a União Europeia? Premeia a Turquia
estando disposta estender as negociações a novas áreas, a permitir a
entrada de cidadãos turcos no espaço Schengen sem vistos, e a pagar-lhe
mais três mil milhões de euros para acolher / manter refugiados ou
migrantes económicos no seu território.